O neurocientista, escritor e professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe/UFRN), Sidarta Ribeiro, defende que o sono é tão importante quanto a alimentação para que crianças e jovens tenham condições de aprender e alcançar desempenho escolar positivo. Nesta entrevista, ele comenta os resultados da pesquisa “Soneca Escolar”, conduzida pela pesquisadora Flora Assaf na SESI Escola Macau, que investiga os impactos do “descanso supervisionado” no turno de aula e busca comprovar os ganhos de um sono reparador no processo de alfabetização.
Sidarta Ribeiro também destaca os efeitos do uso precoce da tecnologia na aprendizagem, alerta para o déficit educacional ampliado pela pandemia e reforça a necessidade de uma grande aliança entre agentes públicos e privados para promover uma revolução educacional no Brasil. Confira:
O que motivou o Instituto do Cérebro a investigar o papel da “soneca”, especificamente em crianças em processo de alfabetização?
O trabalho que Flora Assaf está desenvolvendo agora, junto com a professora Janaína Weissheimer e o professor Felipe Pegado, busca justamente transformar esse experimento, que foi bem-sucedido em pequena escala, em algo de grande alcance. Algo que possa ser aplicado, potencialmente, em todo o Brasil. Esse é o nosso sonho.
Isso significa envolver professoras e professores, porque não há como a mestranda realizar todo o treinamento sozinha. Precisa ser feito pelos próprios docentes. Por isso, temos essa parceria muito bacana com o SESI de Macau, principalmente por meio da mediação de Ana Luiza Amaral e de toda a equipe pedagógica, o que permite um experimento em escala maior.
Do ponto de vista neurocientífico, o que acontece no cérebro da criança durante o sono que pode favorecer a consolidação da leitura?
Existem muitos mecanismos neurobiológicos ativados pelo sono que facilitam a consolidação da memória, e parte deles está ligada à atividade elétrica dos neurônios.
Durante o sono, as memórias são reativadas ou reverberadas. Ou seja, aquilo que foi aprendido volta a circular. Há também um componente molecular: certos genes, chamados genes imediatos, são ativados. Eles estão diretamente relacionados à remodelagem sináptica.
Esses genes permitem transformar a atividade elétrica que reverbera as memórias em modificações sinápticas de longo prazo. Em outras palavras, remodelam a forma como os neurônios se comunicam, gerando memórias duradouras.
“Nesse sentido, a parceria com a
SESI Escola é fundamental, pois a
instituição conta com uma estrutura
bem estabelecida — não apenas física e
material, mas também organizacional
e cultural. Temos uma equipe
pedagógica dedicada.”
Quais os principais desafios metodológicos de aplicar uma pesquisa desse tipo dentro da rotina escolar e como a parceria com a SESI Escola Macau ajudou a superá-los?
O principal desafio é que cada sala de aula é um universo. Cada turma tem sua composição própria e a relação específica de cada professor com seus alunos. Isso torna difícil replicar a experiência em grande escala, já que não se trata de um ambiente de laboratório, com variáveis totalmente controladas. A escola é um espaço multifacetado.
Nesse sentido, a parceria com a SESI Escola é fundamental, pois a instituição conta com uma estrutura bem estabelecida — não apenas física e material, mas também organizacional e cultural. Temos uma equipe pedagógica dedicada, e destaco a colaboração de Caroline Fernandes, supervisora pedagógica, que tem nos ajudado bastante.
O SESI providenciou colchonetes, pijamas personalizados e criou todo um engajamento emocional. Trata-se de um experimento de longa duração: são cinco semanas de soneca após o almoço. As crianças têm aula normal pela manhã e, depois, metade delas permanece em sala para dormir. Tudo isso exige muito comprometimento. E, quando realizamos esse tipo de experimento em grande escala, a chance de fatores não controlados interferirem é enorme. Nesse contexto, a parceria com essas escolas tem garantido uma homogeneidade da intervenção, o que é extremamente valioso.
O senhor pesquisa a relação entre sono, memória e aprendizagem há quase duas décadas. O que esse projeto traz de inédito em relação a estudos anteriores em outras faixas etárias?
A pesquisa de Flora representa a etapa final de aplicação, que é levar os resultados para o mundo real. Quando, no doutorado de Arzin Torres, demonstramos que era possível dobrar a velocidade de leitura, isso foi feito em três momentos consecutivos, com turmas de menos de 20 crianças e com o envolvimento direto da pesquisadora na intervenção. Evidentemente, isso não é viável em escala municipal, estadual, muito menos nacional.
O trabalho da Flora, portanto, é muito importante e tem um grande desafio: levar esse resultado extremamente positivo para um número muito maior de salas de aula, com professores diferentes e em condições distintas. Eu diria que talvez essa seja a parte mais difícil.
Caso os resultados confirmem benefícios da soneca escolar, como essa prática poderia ser incorporada de forma mais ampla às políticas públicas de educação no Brasil?
Começamos a realizar uma abordagem em nível estadual, com o apoio da governadora Fátima Bezerra, da deputada Natália Bonavides e da secretária de Educação, Maria do Socorro Batista. Essa intervenção começou antes mesmo do contato com a SESI Escola.
Acredito que, se obtivermos bons resultados no mestrado da Flora — que certamente avançará para o doutorado —, teremos argumentos sólidos para transformar essa experiência em política pública, levando-a a governos de diferentes estados, a começar pelo Nordeste. Precisamos pensar grande.
Se conseguirmos uma intervenção que dobre a velocidade de leitura das crianças no início da alfabetização, o impacto na educação será enorme. A leitura é como a decolagem de um avião: precisa de certa velocidade. Se a criança lê devagar demais, não sente prazer. Sem prazer, não alcança uma compreensão verdadeira. É o que observamos: muitas passam pela alfabetização, “se alfabetizam”, mas não se tornam leitores de fato, porque não adquirem o gosto pela leitura.
A velocidade de leitura é, portanto, parte fundamental desse processo. Já temos a fórmula em pequena escala; agora precisamos descobrir como aplicá-la em larga escala.
A Rede SESI tem compromisso com o avanço da pesquisa em educação no Brasil e, por isso, vem desenvolvendo estudos em parceria com universidades federais em diversas escolas de outros Departamentos Regionais. Qual a importância de as escolas abrirem as portas para o desenvolvimento de pesquisas?
Acho isso absolutamente fundamental e extremamente auspicioso. A revolução que o Brasil precisa é educacional. E isso significa que devemos construir uma grande aliança entre agentes públicos e privados. Não interessa que nos dividamos; precisamos nos unir para que dê certo.
O uso de celulares e computadores tem começado cada vez mais cedo entre as crianças. Quais evidências existem sobre os malefícios desse uso precoce na aprendizagem?
Essa questão é extremamente relevante, e o impacto é muito negativo e devastador. Pais e mães que dão celulares a seus filhos antes dos 15 anos estão cometendo um equívoco e prejudicando a educação deles.
Essa epidemia de déficit de atenção, na verdade, é de telas que sequestram a concentração das crianças. Elas capturam o desejo e ativam sistemas de recompensa no cérebro que são os mesmos envolvidos na dependência de várias drogas.
Muitos pais têm medo de que seus filhos se envolvam com drogas, mas, ao entregar um celular, estão oferecendo algo comparável a uma droga pesada e tóxica. Não quero demonizar o celular, que é uma ferramenta útil, mas ele exige maturidade. Nós, adultos, já temos dificuldade em regular nossos impulsos diante dele; imagine uma criança ou adolescente.
Existem vários estudos que demonstram os impactos negativos nas funções cognitivas, nas emoções, na sociabilidade e nas competências socioemocionais. Precisamos entender que, já que o celular funciona como uma droga pesada, deve ser usado com critérios semelhantes aos que adotamos para um medicamento: qual a dose adequada? Qual a qualidade do que está sendo oferecido?
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que crianças com menos de 6 anos não tenham contato com celulares. Quando houver contato com telas nessa idade, deve ser de forma coletiva — como assistir a um filme em família — e nunca ultrapassar duas horas por dia. Uma criança entregue sozinha ao TikTok, ao Reels ou ao YouTube está desprotegida e em risco.
Há evidências de que o uso controlado da tecnologia, como aplicativos educativos, pode potencializar a aprendizagem em vez de prejudicá-la?
Sem dúvida, o audiovisual é uma invenção maravilhosa, mas precisamos de equilíbrio. Se o audiovisual ocupar todo o espaço, onde ficará a leitura? Onde ficará a música, o teatro?
Fiquei muito preocupado quando soube que, no colégio do meu filho, no Rio de Janeiro, um coral tradicional, existente desde os anos 70, estava esvaziado porque ninguém queria participar. Depois que a escola proibiu os celulares — antes mesmo da lei —, o coral voltou a ter integrantes.
Precisamos compreender que a vida real, a vida não mediada por telas, é mais importante. Ela existia muito antes e precisa continuar existindo. O audiovisual é uma ferramenta valiosa, com inúmeros conteúdos de qualidade, mas deve ser oferecido na medida e com critérios adequados.
Em suas pesquisas sobre sono e aprendizagem, já foi possível observar algum impacto do tempo de tela na qualidade do sono e, consequentemente, na consolidação da memória?
Certamente. O maior problema da consolidação da memória é a falta de sono de boa qualidade. Quem está o tempo todo recebendo notificações não consegue dormir bem nem atingir sono profundo.
Estudos mostram que, nas cidades, as pessoas dormem hoje em média duas horas a menos do que há 100 anos. E isso só piorou com a internet e os celulares. Não quero demonizar essas tecnologias, que são maravilhosas, mas precisamos impor limites.
Com moderação, elas podem ser ferramentas poderosas para o desenvolvimento cognitivo. Sem limites, no entanto, tendem a prejudicá-lo — como já estamos observando. Essa geração, pela primeira vez, apresenta um QI menor do que o de seus pais. O teste de QI mede apenas um tipo de inteligência, mas historicamente sempre houve aumento entre gerações. Agora, pela primeira vez, ocorreu uma queda, que parece estar ligada ao uso excessivo e desregulado de conteúdos audiovisuais.
Muitos especialistas falam em uma “geração pós-pandemia” com lacunas na alfabetização. Como iniciativas como a Soneca Escolar podem ajudar a recuperar esse déficit?
Acredito que sim. Vários estudos já mostram que, quando a criança chega à escola com déficit de sono, a instituição pode suprir essa necessidade, assim como já provê alimentação para quem não se alimentou bem em casa. A escola pode — e deve — oferecer a oportunidade de dormir, porque uma criança maldormida tem dificuldades tanto para recuperar conhecimentos já adquiridos quanto para aprender novos conteúdos.
Existe o sono antes do aprendizado, essencial para restaurar o sistema nervoso e permitir que ele aprenda, e o sono depois do aprendizado, que consolida as informações. Pesquisas de longa data demonstram que uma soneca após o almoço restaura a capacidade de aprendizado.
Isso é particularmente importante no caso do ensino integral, que representa o futuro da educação e deve ser conquistado nacionalmente, para que o Brasil possa dar um grande salto em qualidade educacional.
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